Bem vinda ou bem vindo ao Hiperativo, um espaço para reflexão sobre temas diversos a partir de textos literários ou informativos. Meu nome é Marcelo Cafiero e hoje o nosso tema será essa vontade de deixar para nunca o que se pode fazer ontem, a procrastinação.

Música de fundo: Rhapsody in blue

TEXTO 1: 50%

Autor: Marcelo Cafiero

    Desde o início da noite ela estava sentada em frente ao computador, tentando terminar o texto que havia começado há meses atrás. Em sua mente, via o livro se completando, mas as palavras não se transferiam para tela. Olhou para a mesa de trabalho, vários documentos se acumulavam, também esperando uma conclusão. Estava cansada, àquela hora da noite, não conseguiria mais produzir qualquer coisa.

    Levantou-se e deixou o copo com o resto de café frio sobre a mesa. Saiu do escritório e caminhou pela casa em direção ao quarto. Na sala, caixas aguardavam sua atenção para organização dos objetos e uma bicicleta com pneus murchos revelava a intenção não cumprida de uma vida saudável ao ar livre. Abriu a porta do armário para trocar de roupa. Separou o pijama em meio a várias peças nunca usadas que ela havia prometido separar para doação, mas nunca teve tempo. O cansaço era grande e adormeceu logo que se deitou na cama.

    Pela manhã, o celular a despertou com a música que já deixou de ser a sua favorita, pegou-o para desligar e viu que ele marcava somente as horas… a parte que marcava os minutos não estava lá, ela segurava apenas metade do celular. Olhou em volta, tudo estava ao meio! Estava deitada sobre metade de uma cama, vendo metade da TV que ficou ligada durante a noite. Sobre metade do criado mudo, metade de um copo ainda retinha água em seu interior. Correu para o banheiro e olhou para a metade restante do espelho… com apenas um olho, via metade de si mesma! Viu-se como cortada ao meio, órgãos internos todos visíveis… um coração bombeava sangue para apenas um dos pulmões! Desesperada, sentiu desejo urgente por uma xícara de café e correu para a cozinha… parou de repente, quase caindo do abismo de seu meio apartamento. Nada daquilo fazia sentido… como tudo funcionava estando partido? Como viver uma vida pela metade?

Conformada, sentou-se em frente ao computador, com apenas uma das mãos, retomou o trabalho do dia anterior… tomou o resto do café frio do dia anterior e recolocou a xícara inteira sobre a mesa. A cada palavra que escrevia, sentia-se mais completa até que, finalmente, abriu os olhos…

TEXTO 2: Procrastinar pode ser bom!

Os supostos especialistas, incluindo psicólogos, psiquiatras, coaches, neurofisiologistas, especialistas em management e todos os tipos de vendedores de conselhos, costumam citar os resultados desses estudos com o objetivo de dar uma aparência de cientificidade à autoajuda oferecida em todos os formatos possíveis: livros, conferências motivacionais, programas de rádio, blogs pessoais, revistas científicas — sim, estas também oferecem autoajuda –, podcasts e aplicativos para celulares. Poderíamos supor que, se todos se apoiam nos mesmos estudos científicos, as estratégias também deveriam ser as mesmas. No entanto, encontramos tantas supostas soluções quanto pretensos especialistas: identifique claramente seus objetivos, procure apoio social, bloqueie as distrações, reestruture suas cognições, perdoe-se, reconheça o stress, utilize a procrastinação a seu favor, distribua bem suas tarefas, faça de sua paixão uma vocação… Um arsenal de alternativas para evitar cair no terrível pecado da improdutividade.

Essa forma de abordar o assunto é bastante limitada quando se trata de encontrar lógicas psicológicas úteis. Como explicar que uma pessoa adie certas tarefas e outras não? E que adie uma mesma tarefa em um determinado momento, mas não em outro? Não é possível entender por que uma pessoa procrastina, sem conhecer o contexto em que esse comportamento ocorre e a história da pessoa em relação às tarefas que pretende abordar. Propor soluções sem realizar uma análise funcional do comportamento é soprar para ver se a flauta soa, que é exatamente o que os charlatões e vendedores de autoajuda fazem. E, claro, às vezes dão sorte, a flauta soa e o burro pensa que é músico, como na fábula do escritor espanhol Tomás de Iriarte.

Mas poderíamos fazer outra pergunta: por que procrastinar é necessariamente um problema? Por que precisamos ser produtivos, “cidadãos úteis”, “seres humanos eficazes”? Por trás da assepsia dos “especialistas” e dezenas de estudos, o que encontramos é a eficácia erigida como valor e norma a seguir, de modo que qualquer desvio se torna uma patologia ou um pecado, dependendo de quem seja o juiz. Procrastinar, às vezes, pode ser um problema, mas também pode ser um indicador de que temos de parar, de que nos vemos empurrados para exigências que superam nossa capacidade de atendê-las, de que estamos submetidos a um ritmo excessivamente rígido. O direito de procrastinar torna-se uma demanda revolucionária em tempos de hiperatividade produtiva. Confrontados com especialistas em eficiência, reivindicamos com Paul Lafargue o direito à preguiça. 

INTERTEXTO 1: A técnica do tomate

A técnica do tomate foi desenvolvida para procrastinadores.

Você vai precisar de um cronômetro e um tomate. Parta o tomate em 4 fatias e marque programe 25 minutos no cronômetro. Você realiza a atividade por 25 minutos, coma uma fatia do tomate e viva livre por 5 minutos. Repita o ciclo até acabar o tomate. Ao final, quando não restarem mais fatias, como recompensa, vá até a geladeira para buscar o próximo tomate.

TEXTO 3: Poema

ODE TRIUNFAL

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés — oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de L’Opéra que entram
Pela minh’alma dentro!

COMENTÁRIO FINAL

Este foi mais um episódio do podcast Hiperativo, o mais procrastinador dessa internet

Há um tempo a Cíndia, do Pudim Cast, desafiou meu pensamento ao brincar que o Hiperativo não era tão ativo assim. Na verdade, essa é a principal característica dessa hiperatividade, a inconclusão ou a dificuldade em se manter uma chamada produtividade. Sei que há diversas crianças e adultos que sofrem com Transtorno de Hiperatividade (que pode ou não ser acompanhado por Déficit de Atenção) e não tenho qualquer pretensão de relativizar ou glamurizar essa característica. Por outro lado, é claro que a profusão de diagnósticos de Hiperatividade e Déficit de atenção é diretamente proporcional à crescente demanda social por uma condição específica de atividade e foco. Você precisa ser produtivo! Se você não é produtivo para sociedade, é vagabundo, desnecessário, descartável. Ao mesmo tempo, essa mesma sociedade cria inúmeros mecanismos de improdutividade: jogos, redes sociais, filmes, livros….

Para no final, apenas te dizer: Jogue, mas não muito! Interaja, mas não muito! Assista, mas não muito! Leia, mas não muito!

Assim, muitas doenças e transtornos modernos são classificados como função ou desfunção. Autista funcional é aquele que consegue atender as demandas do trabalho. A pessoa com deficiência é considerada funcional quando é capaz de suprir o que o mercado deseja. Por outro lado, quando não, ela poderá ser aposentada por invalidez… ou seja, alguém que não tem valor. Quando o único valor é dinheiro, ser improdutivo é ser inválido.

Nesse cenário, procrastinar é pecado! Até mesmo Deus fez o mundo seguindo o pomodoro e só descansou com a tarefa completada! Por isso usou só sete dias, claro que não podem ter sido 14 bilhões de anos! Onde já se viu, um Deus tão preguiçoso… E se Deus só descansou no final, não é você que, “como muitos, é apenas mais um”, que vai fazer diferente!

O texto que abriu este episódio chama-se 50% e foi escrito por mim. O segundo texto é um trecho de Ode Triunfal, de Álvaro de Campos, outro dos heterônimos de Fernando Pessoa. O último texto é o final de um artigo publicado no El País Brasil. Por fim, a música que acompanhou todo este episódio chama-se Rhapsody in blue….

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