A todo tempo procuramos o sentido das coisas, mas há coisas que não fazem sentido? Dissecar um texto até que sobrem apenas partes espalhadas em uma mesa ensanguentada ajuda a compreendê-lo ou mata o prazer da leitura?

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Texto 1

A Esfinge

    Cheio de culpa por ter matado um homem após uma simples discussão, Édipo buscava em sua mente uma forma de redimir-se frente aos deuses. O fato havia ocorrido há algumas semanas, mas a lembrança de seu punhal atravessando a carne e do jorro quente de sangue que cobriu-lhe o braço ainda estava vívida em sua memória, bem como a imagem de espanto no rosto do homem caído ao chão da estrada.

    Parou ao lado de um rio para saciar a sede, quando ouviu pessoas aproximando-se. Temendo que estivessem atrás dele, escondeu-se entre arbustos e escutou-os conversando. Falavam com uma mistura de medo e preocupação, mas ele não era o assunto, mas sim um monstro que ocupara a estrada para Tebas, matando todos os que se atreviam a tentar passar. “A rainha ofereceu sua mão a qualquer um que seja capaz de eliminar a fera”, disse um deles. Édipo percebeu a oportunidade de livrar-se da culpa que carregava, “o que eu tenho a perder?”, pensou e decidiu confrontar o perigo.

    Caminhava resignado, consciente de que a cada passo estava mais próximo de sua morte do que de expiar seu pecado. Quando aproximou-se de uma curva, um vento trouxe o cheiro de sangue e carne em decomposição. Sentiu náusea e seu passo tornou-se mais vacilante… após uma elevação viu um monte de corpos espalhados pela estrada, homens e cavalos misturavam-se em podridão e carroças estavam jogadas dos lados. Em meio a esse cenário, estava a figura de uma criatura com o corpo de um leão, mas a cabeça de uma mulher. Era maior que um leão comum, e a expressão da mulher era fria, misteriosa. Por um instante, Édipo pensou que ela não o havia percebido, mas, então, um leve sorriso apareceu em seu rosto. Seria esse o enigma da esfinge? Decifrar o significado da expressão de seu rosto? Seus pensamentos foram interrompidos por uma voz suave, na qual não se percebia qualquer sentimento:

  • Decifra-me ou devoro-te!

    Essas palavras penetraram na cabeça de Édipo e aumentaram suas dúvidas, não que ele tivesse qualquer opção além das que foram apresentadas pela figura, mas questionou sua própria sanidade que o havia levado até aquele local onde certamente encontraria sua morte. Suas divagações foram interrompidas pela nova fala da esfinge:

  • Qual animal anda pela manhã com quatro pés, à tarde com dois e à noite com três?

    Não conhecia aquele enigma… um animal que mudava sua forma de andar ao longo do dia? Certamente aquele monstro viajara por países distantes e conhecia tal animal exótico! Não conseguiu evitar o pensamento de que era desonesto da parte dela usar desse artifício… lembrou-se de ter visto um lagarto correr em duas patas uma vez, mas certamente não em três. Cavalos, águia, cobra, sapo… o sapo nada quando nasce para, só na vida adulta, passar a saltar. Era isso! Adivinhou a resposta a resposta! Um sorriso surgiu em seu rosto, e o monstro dirigiu-lhe um olhar curioso, pois duvidava que qualquer um pudesse concluir uma resposta tão óbvia.

  • O homem! – Gritou Édipo exultante. No início da vida o homem engatinha, na idade adulta anda ereto, enquanto na velhice apoia-se em uma bengala.

    O rosto da esfinge se contorceu. Embora tivesse a certeza de ter acertado o enigma, o jovem rapaz temeu que o monstro não cumprisse sua promessa. Porém, após um grito assustador, este correu em desespero e vergonha, de maneira tão alucinada que não foi capaz de perceber um desfiladeiro de onde caiu.

    Tebas viu-se livre do mau que a assolava, e Édipo casou-se com a rainha Jocasta. Seu destino, entretanto, como você já deve saber, não foi feliz. Pois o homem que ele havia matado, era seu pai, Laio, e Jocasta, agora sua esposa, sua mãe.

Parte 2: Comentário

Bem vindos e obrigado a todos pela audiência, eu sou Marcelo Cafiero e este é o Hiperativo, um espaço para reflexão sobre temas diversos a partir de textos literários e informativos. Hoje, o nosso tema é o “Sentido”.

Parte 3

A vida o universo e tudo mais…

Nunca mais acordaremos de manhã perguntando a nós mesmos: Quem sou eu? Qual o meu objetivo na vida? Em uma escala cósmica, faz alguma diferença se hoje eu resolver não me levantar e não ir ao trabalho? Pois hoje saberemos, de uma vez por todas, a resposta clara e simples a todas estas incômodas perguntas relacionadas à Vida, ao Universo e a Tudo Mais!

  • Há 75 gerações, nossos ancestrais deram início a este programa – disse o segundo homem – , e após todo esse tempo nós seremos os primeiros a ouvir o computador falar.

Houve uma pausa cheia de expectativa quando as luzes do painel lentamente foram se acendendo. As luzes piscaram, como se a título de experiência, e logo assumiram um ritmo funcional. O canal de comunicação começou a emitir um zumbido suave.

  • Bom dia – disse o Pensador Profundo por fim
  • Ah… Bom dia, ó Pensador Profundo, você tem… ah, quero dizer…
  • Uma resposta para vocês? Tenho sim.
  • A resposta final? À grande questão da Vida, do Universo e Tudo Mais?
  • Sim. Se bem que eu acho que vocês não vão gostar.
  • Não faz mal.
  • Olhem, vocês não vão gostar mesmo.
  • Diga logo!
  • Está bem… A resposta à Grande Questão…
  • Sim…!
  • Da Vida, o Universo e Tudo Mais,
  • Sim!!!
  • É <suspiro.
  • Sim… !! ?
  • Quarenta e dois.

Parte 4: Comentário

Qual a semelhança entre um corvo e uma escrivaninha?

Chapeleiro em Alice

A resposta para o enigma do Chapeleiro, assim como a pergunta para a resposta do Pensador Profundo são dois enigmas que perduram na literatura. Embora seja divertido o exercício de pensar sobre eles, existem muitas pessoas que buscam obsessivamente por respostas. Ambos autores, quando perguntados, responderam que também não sabiam, mas muita gente acredita que eles estavam mentindo.

Bom… será que 42 não foi simplesmente a primeira ideia engraçada e sem sentido que ocorreu à Douglas Adams? Precisa de um motivo? E a charada do Chapeleiro? Após dizer tantas coisas sem sentido à Alice durante o chá, será que Lewis Carrol realmente pensou em uma resposta possível?

Eu sempre me incomodei com essa verdadeira obsessão dos professores de Língua Portuguesa pelo “sentido” das coisas. “Qual o sentido dessa palavra ou expressão?” sempre foi uma pergunta básica em provas de escola. Como uma esfinge sentada no caminho dos alunos, através de um rosto enigmático propõe: “Decifra-me ou devoro-te!”. E, assim, o simples sentir da literatura acaba perdendo para o decifrar, resolver, adivinhar. Não que não sejam tarefas divertidas, mas cercado de corpos daqueles que vieram antes dele e falharam…

Eu gosto da ideia de que muitas coisas são como são, porque era interessante que fossem assim. É como quando tentamos explicar uma piada, ou revelar o truque do mágico, estraga toda a graça. Como escreveu Fernando Pessoa:

“Quem está ao sol e fecha os olhos,

Começa a não saber o que é o sol

E a pensar muitas cousas cheias de calor.

Mas abre os olhos e vê o sol,

E já não pode pensar em nada,

Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas.

A luz do sol não sabe o que faz

E por isso não erra e é comum e boa.”

Parte 5

Sentidos

Depois de trinta anos de trabalho como professor de Língua Portuguesa, deu sua última aula, recebeu um abraço de todos os colegas e foi para casa. A família já o esperava com uma pequena comemoração. A aposentadoria veio assustadoramente rápido.

No dia seguinte, acordou e não conseguiu perder a sensação de que deveria estar fazendo alguma coisa. Pegou o jornal, e passava as páginas pensando em como poderia estimular os alunos a entender melhor o sentido de cada notícia, tirinha e editorial que lia. Estava acostumado a olhar o mundo a seu redor como professor, seria difícil de largar o vício de pensar em perguntar o sentido de cada coisa. Decidiu dar uma volta de carro para fazer algo mecânico. Após alguns quarteirões, um policial o parou.

  • Documentos.
  • Qual o sentido dessa frase?
  • O que?
  • “Documentos”, é uma frase não oracional. Que sentidos ela pode ter?
  • Não tem muitos sentidos, apenas um!
  • Toda frase é capaz de ter vários sentidos, dependendo do contexto. Por exemplo, se estiver na porta de um armário, significa que ali estão guardados documentos. Ou, se estiver sido dita por um funcionário após indicar uma pilha de papel seria uma descrição.
  • Sim, mas nesse caso, foi dita por um policial de trânsito a um motorista. Então indica que este motorista deve entregar o seu documento de habilitação e o documento do veículo.
  • Ah! Sim, perfeito! É uma injunção.
  • Exato, há toda uma oração implícita: “Posso ver seus documentos?”
  • Puxa, você é bom! – Disse o ex-professor entregando os papéis ao policial e acelerando o carro em seguida.

    O policial sorriu satisfeito ao observar onde estava escrito o número 10.

Parte 6: Comentário final

Esse foi o oitavo episódio do Podcast Hiperativo.

O primeiro texto deste episódio é uma adaptação de minha autoria de parte do mito de Édipo, escrito por Sofócles. Como a maioria deve saber, Édipo foi abandonado pelo pai, Laio, quando este recebeu de Delfos a profecia que de seu filho o mataria e casaria com sua esposa. Como em todas as tragédias gregas, o destino é inexorável, e Édipo mata seu próprio pai e desposa a mãe que, ao saber o que havia acontecido, perfura os próprios olhos.

O Segundo texto é um trecho do livro Guia dos Mochileiros das Galáxias, de Douglas Adams. Em meu comentário, cito o trecho do poema “O Guardador de Rebanhos” de Fernando Pessoa, sob o pseudônimo de Alberto Caeiro. A crônica, “Sentidos” é de minha autoria. Por fim, encerra esse episódio o poema “The Owl and the Pussycat” de um dos inauguradores da poesia non-sense, Edward Lear.

Caso queiram enviar comentários e sugestões enviem email para podcasthiperativo@gmail.com. Vocês também podem me encontrar no Twitter @hiperativo_pod e todas as semanas no www.entrefraldas.com.br

Eu fico por aqui, até a próxima!

“The Owl and the Pussycat” é o poema mais famoso de Edward Lear, a tradução mais conhecida dele, cantada por Adriana Calcanhoto, é “O mocho e a gatinha”. No poema original, Lear não deixa transparecer o gênero das personagens, o que é facilitado pelo fato da língua inglesa não apresentar sufixo determinador do gênero em substantivos. Por esse motivo, é adotada aqui a tradução como “A Coruja e a Gatinha”. Assim estamos nos aproximando dessa ambiguidade original por “Coruja” ser um substantivo “epiceno” ou invariável.

Parte 7

A coruja e a Gatinha

Edward Lear

A coruja e a Gatinha navegaram

Em um belo barco verde-limão,

Levaram mel e dinheiro a granel,

Envolto numa nota de um tostão.

A Coruja contemplava a noite estrelada,

E ao som de uma violão se pôs a cantar:

“Ó adorável Gatinha, ó Gatinha, adorada,

Tu és a Gatinha que eu vou amar,

Amar,

Amar!

Tu és a Gatinha que eu vou amar!”

A Gatinha falou radiante, “Ó ave elegante

Como cantas tão doce e tão bem!

Vamos então nos casar; não devemos adiar:

Mas qual anel nos convém?”

Navegaram além da baía, durante um ano e um dia,

Até a terra onde cresce o anis,

E lá, na floresta, um porco-chinó fazia a sesta,

Com um anel na ponta do nariz,

nariz,

nariz,

Com um anel na ponta do nariz.

“Meu porco, de coração, venderias por um tostão

O seu anel?” Disse o porquinho: “Venderia”.

Eles o levaram, e no outro dia se casaram

Numa colina onde o Peru vivia

Serviram-se de cogumelo e fatias de marmelo,

Comendo com uma colher esgolfiada;

E de mãos dadas, nas encostas arenadas,

Dançaram sob a noite enluarada,

Enluarada,

Enluarada,

Dançaram sob a noite enluarada.