Sobre a utilização de livros acadêmicos em sala de aula

Temos uma tendência extremamente disfuncional de separar estritamente a Academia e o Ensino Básico. É justamente esse o trabalho que nós do GizCast estamos tentando fazer. Aproximar os dois âmbitos de uma maneira que caminhem juntos e, além do mais, dialoguem entre si.

Por isso, trago um pequeno devaneio próprio sobre a utilização de livros acadêmicos em sala de aula – e nas salas de aula do Ensino Básico. Não só a utilização dos conceitos que esses livros trazem; inserir o debate entre Hobsbawn e Trevor-Roper acerca da crise do século XVII de uma maneira simplista e simplificada é relativamente fácil – seria o embate eterno entre o materialismo e o idealismo. Porém, como utilizar os textos de Eric Hobsbawn e Hugh Trevor-Roper para montar uma aula interessante e que interesse os alunos? Todo o debate entre a escola economicista de análise da Crise do Século XVII – crise dos preços, mudanças econômicas absolutas, formação do absolutismo – e a escola mais “espiritualista” e conscientária – representadas nos dois trabalhos seminais de Hugh Trevor-Roper e Paul Hazard – pode ser inserida em sala de aula através de seus próprios textos?

A linguagem como obstáculo

O primeiro obstáculo é a linguagem. Além da dificuldade das traduções de alguns textos (a obra de Lublinskaya sobre o período existe apenas em espanhol, e o próprio artigo do Hobsbawn tem uma tradução bem mal feita para o português, sendo a melhor opção ou o espanhol ou o original em inglês), a dificuldade de empreendimento do texto por alunos que não têm a capacidade de compreensão que um texto acadêmico de humanidades exige é fatigante. O ENEM de 2016 trouxe o problema à tona quando mobilizou questões de filósofos contemporâneos, como a questão do Horkheimer – mas isso era algo já esperado.

A abstração dos conceitos

Além do obstáculo da linguagem, há o obstáculo da abstração dos conceitos. Paul Hazard em seu texto seminal – reeditado ano passado pela editora da UFRJ – A crise da consciência europeia 1680-1715 mobiliza imagens extremamente abstratas de passagem de tempo, que são poéticas, mas pouco claras. A beleza do texto de Hazard compensa a sua falta de clareza – mas isso é positivo academicamente. Porém, ao mesmo tempo, algumas figuras que o autor cria poderiam também facilitar a utilização de tal texto em sala de aula: a noção da Reforma e do Renascimento enquanto aventuras e que os filósofos do início do século XVII estariam buscando a estabilidade após essas aventuras; a noção de que os filósofos “iluministas” estariam buscando uma completa destruição do prédio das ideias que a “Idade Clássica” construiu.

Contudo, acredito que a utilização desses textos em sala de aula pode ser extremamente proveitosa para o ensino, se forem bem aplicados. Numa rápida digressão, me vem à cabeça uma série de fatores positivos para isso: a criação e o instigar da noção de um “debate” que não caia no embate, um preparo para os alunos encararem esses textos antes de entrar na universidade, aproximação com escolas teóricas a, b ou c. Uma aula de filosofia sobre o iluminismo baseada no capítulo “Pierre Bayle” da obra de Paul Hazard, ou então uma retomada dos conceitos econômicos elencados por Hobsbawn para responder à pergunta inicial do seu texto de “porque a Revolução Industrial não aconteceu no século XVII?” são caminhos interessantes de utilização desses textos.

Conclusão

Uma aula bem engendrada, utilizando esse material, pode substituir qualquer tema de uma aula apostilada. Ao invés de cuspir os conceitos que o módulo da apostila pede sobre “Crise do Século XVII” ou sobre “Iluminismo”, a utilização de Hugh Trevor-Roper ou então do clássico Origens Intelectuais da Revolução Francesa de Roger Chartier pode fazer o mesmo trabalho de uma maneira muito mais interessante – tanto pelo aluno, como pelo professor.

Fica então a reflexão.


P.S.: A utilização de exemplos foi focada em textos sobre a Época Moderna pois são os textos que eu mais trabalho; Essa é a minha área de interesse de pesquisa, e, consequentemente, é a área que eu consigo ir mais longe. Porém, nada impede de transcender essa proposta a outros períodos. Utilizar os livros de J. P. Vernant ou de Paolo Scarpi sobre a religiosidade na Antiguidade, ou o clássico de Marc Bloch pra analisar a política medieval, ou o livro de M. Senellart pra pensar a política na Baixa Idade Média, ou as obras de Nicolau Sevcenko pra pensar a cultura na República do Brasil. Enfim, exemplo é o que não falta.