Bem vinda ou bem vindo ao Hiperativo, um espaço para reflexão sobre temas diversos a partir de textos literários ou informativos. Meu nome é Marcelo Cafiero e hoje o nosso tema será a intolerância.

TEXTO 1: O último homem sobre a terra

Autor: Marcelo Cafiero

Ele era o último homem sobre a terra. Tinha plena certeza disso, pois não encontrou ninguém mais desde a morte de sua mãe há muitos anos atrás. Todos os dias ligava um velho rádio e transitava pelas frequências que se limitavam a ruídos da ausência de transmissão. Mantinha esse velho hábito apenas por não ter nada melhor para fazer e a repetição ajudava a manter um pouco da sanidade.

Quando ainda era criança, sua mãe havia lhe contado a história da humanidade. Em algum momento, após várias guerras, os governos decidiram que a solução seria segregar as pessoas de acordo com seus dogmas e concepções. Assim, surgiram os países para cada religião pensamento econômico. As escolas eram como internatos, construídas em um território neutro, e apresentavam para as crianças todos os grandes filósofos e religiosos. Quando completavam dezesseis anos, seus professores indicavam qual país se adequava a cada indivíduo. Mas, apesar de todos os esforços, as guerras continuavam na mesma intensidade.

O barulho do motor à gasolina invadiu a garagem. Ele gritou e dançou de felicidade. Estava quase sem combustível para o gerador. Consertar o motor do velho Corolla 2025 era questão de sobrevivência. Conduziu o veículo pelas ruas cheias de buracos, mato e sucata enquanto procurava um dos poucos postos que haviam sobrevivido aos incêndios. Era surpreendente que uma civilização fosse capaz de criar tantas coisas e acabar se implodindo por não conseguir trocar ideias.

Quando perceberam que os conflitos não cessaram, os governos tentaram fazer uma nova divisão, ainda mais específica. Porém, independente do quanto se tentasse separar as diferenças, sempre surgiam novas. Por fim, depois de anos de tentativa e milhares de recursos gastos, a separação foi abolida, os povos voltaram a conviver e conversar entre si. Mas então o caos foi ainda maior, pois ninguém mais era capaz de entender pensamentos diferentes. Guerras imensas e intermináveis estouraram para buscar definir a verdade final. O planeta tornou-se praticamente inabitável.

De volta para o prédio que tornou-se sua casa, ele descarregou os galões de combustível do carro e reabasteceu o gerador. Sua mãe não sabia como eles haviam sobrevivido, apenas ficaram ali, por anos tentando um contato que nunca veio.

Subitamente, uma batida na porta interrompeu seus pensamentos. Ele abriu e viu um homem quase de sua mesma idade. Espantado, tentou relembrar o que deveria fazer quando encontrasse alguém, por fim, apenas disse.

– Olá! Há quanto tempo, ein?
– O trânsito estava horrível! – foi o que o outro respondeu, também hesitante.
– Tem visto alguém?
– Não, perdi o contato com todo mundo.

Mantiveram a conversa por um bom tempo, falando sobre amenidades como o calor dos últimos dias, os locais onde ainda havia combustível e os melhores rios para se tomar um banho. Foi então que o assunto virou o governo.

– Nunca deveriam ter unificado os países! – disse o outro.
– Absurdo! O problema foi justamente a Separação! – respondeu acalourado.

Os argumentos se atravessavam enquanto o volume das vozes aumentava. 

Como aquele sujeito ousava bater à porta da sua casa para defender a Separação? Era uma simples questão de temporalidade e causa e efeito! Não é possível que fosse incapaz de perceber isso! Fechando a porta com violência, ele ficou contente de ver o outro partir em seu Civic. 

De todas as pessoas para restarem no mundo, tinha que ter sido um separatista? 

TEXTO 2: Comentário

Em outubro de 1347 uma frota com 12 galeões genoveses buscou porto na cidade de Italiana de Messina. Entre a tripulação, muitos apresentavam bolhas pustulentas pelo corpo, febre e uma boa parte dos que haviam morrido pelo caminho ainda permaneciam jogados nos porões e no convés. Aportava na Europa, a doença que em dois anos dizimou quase metade da população e marcou profundamente a história do continente.

A doença era bastante democrática e não distinguia gênero, religião ou classe. Padres eram tão afetados quanto plebeus, famílias nobres perderam terras por não possuírem mais herdeiros. E, ao contrário do que muitos afirmam, judeus e cristãos foram afetados da mesma forma. Muitos médicos judeus morriam por terem contato com pacientes infectados no exercício de sua profissão.

A população atribuiu a doença a um castigo divino, e cresceram as doações, penitências e os sacramentos. Também cresceram as perseguições àqueles que eram considerados infiéis, não convertidos e emissários do demônio. Entre esses, claro, estavam os judeus. Apesar de conviverem entre cristãos há muitos anos, frequentarem suas rodas de conversa, serem seus vizinhos e tratarem das doenças com sua medicina. Quando diante de uma imensa ameaça de morte, eles foram alvo da intolerância e preconceito.

O que hoje chamaríamos de “fake news” contribuíram muito para justificar essa perseguição. Anos antes, em 1321, circulou um boato sobre uma conspiração entre judeus e muçulmanos para envenenar as águas dos poços e matar o povo de deus. Como nada de diferente ocorreu na época isso ficou esquecido. Mas foi resgatado em 1349, no auge da infecção pela peste. Como forma de vingança ou de pacificar um Deus irado (mais provavelmente um pouco dos dois), comunidades inteiras de judeus foram queimados em fogueiras, enforcados, apunhalados, espancados e várias outras formas de extermínio. Isso tudo, apesar da orientação dada pelo Papa Clemente, que eximia os judeus da culpa. Na dúvida, era melhor excluir quem não comungava.

Sorte nossa, não vivemos mais em uma sociedade tão supersticiosa e desinformada…

Em 2008, a sociedade se organizava com base na informação que circula rapidamente movida pela globalização e a integração das economias. Com a tecnologia avançada o suficiente para controlar avanço de epidemias mais violentas como a peste, o medo maior é da miséria e do desemprego. E foi isso que aconteceu quando os Estados Unidos, a maior economia do mundo, percebeu que se organizava em uma bolha imobiliária sustentada por desinformação e malícia dos grandes operadores de crédito. 

Em poucos dias, economias de uma vida inteira viraram pó, famílias se viram no meio da rua e uma recessão não vista nos últimos cem anos empobreceu e matou milhares de pessoas. Em meio ao terror e ao medo, nos anos seguintes cresceram novamente as perseguições àqueles que não eram da comunidade, aos que não compartilhavam a mesma identidade. Apesar de conviverem entre os americanos por muitos anos, por serem seus vizinhos, cuidarem de seus filhos, de suas casas, de sua saúde. Quando diante de uma ameaça de morte, os imigrantes foram alvo de intolerância e preconceito. 

INTERTEXTO: Congresso Internacional do Medo

(Carlos Drummond de Andrade)

Provisoriamente não cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.

Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,

não cantaremos o ódio, porque este não existe,

existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,

o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,

cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,

cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.

Depois morreremos de medo

e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

TEXTO 3: COMENTÁRIO 

O que há em comum entre os acontecimentos da Peste Bubônica no século XIV e a crise imobiliária de 2008 é o medo. Por mais que neguemos nossa origem, como seres humanos somos também animais. E o principal objetivo de todo ser vivo é permanecer vivo e passar seus genes adiante. 

Quando outros animais sociais, assim como nós, sentem que têm sua existência ameaçada a primeira reação é buscar a proteção do grupo. Estar sozinho é mostrar-se vulnerável para ataques. Por isso, nossa primeira reação diante de um alerta é buscar a segurança daqueles com os quais nos identificamos, seja esta uma comunidade baseada na religião, no tom da pele ou nas imaginárias linhas divisórias que criam o conceito de um país.

Em 1989, um grupo de pesquisadores, liderados por Abram Rosemblatt e Jeff Greenberg, da Universidade do Arizona, desenvolveu uma série de experimentos buscando testar o que chamaram de Teoria do Manejo do Terror. Segundo essa ideia, muito do comportamento humano é guiado pelo medo da morte e da finitude. Assim, diante de eventos que lembrem sua não imortalidade a tendência será reforçar os valores culturais de uma comunidade de forma a buscar a imortalidade real (através de uma perspectiva de fé) ou simbólica (com ações que sejam memoráveis).

Um dos experimentos propostos foi realizado com 22 juízes que teriam de julgar o caso de uma mulher presa na prática de prostituição, um crime fortemente relacionado com um valor de moralidade. Antes de analisarem e proferirem uma hipotética sentença porém, 11 desses juízes tiveram que responder a um questionário que os levava a refletir sobre as consequências de sua própria morte. Ao contrário da suposição de que a perspectiva da morte nos leva a igualar todos os seres humanos, os juízes que foram lembrados de sua mortalidade antes de analisar o caso foram muito mais rigorosos em sua sentença, definindo uma multa média de 455 dólares, enquanto os demais apresentaram uma média de 50 dólares.

Assim como disse Drummond, o ódio não existe, o que existe é o medo “nosso pai e nosso companheiro”.

INTERTEXTO: Harry Potter

COMENTÁRIO FINAL

A intolerância e a rejeição ao diferente, aos indivíduos que não percebemos fazer parte de nossa cultura e grupo social, são motivadas essencialmente pelo medo e cresce com ele. Como não temos como evitar sentir medo, a maneira de combater é, portanto, mudando a nossa percepção sobre a diferença.

Em um estudo, de 2015, pesquisadores do Observatório Proxi (voltado para estudos sobre imigrantes) monitoraram os comentários em notícias relacionadas a imigração. Em uma fase de observação, apenas 11% destes comentários eram favoráveis ou, pelo menos, não emitiam intolerância ou violência contra os imigrantes. No segundo momento, os pesquisadores decidiram intervir, inserindo comentários argumentativos de um outro ponto de vista, mais tolerante. Como resultado, excluindo os comentários dos próprios pesquisadores, o número de comentários que apresentava uma visão mais inclusiva também aumentou.

Em outro estudo, este de 2014, um grupo de pesquisadores italianos selecionou aproximadamente 117 estudantes para colher suas visões e percepções sobre os imigrantes no país. Depois de um questionário inicial, eles foram apresentados a trechos da coleção Harry Potter, de J.K. Howling e sua postura foi substancialmente conduzida a uma maior tolerância. Na obra, Harry, Rony e Hermione, os protagonistas, enfrentam constantemente ameaças de um grupo que defende a supremacia dos magos de linhagem pura sobre humanos e mestiços, como são chamados os magos com pais trouxas.

Se a informação objetiva nos permite conhecer outros momentos, outras culturas, a arte tem o papel de nos fazer sentir como os outros e construir assim uma noção de nós. Em 1995, o artista chinês Ai WeiWei  produziu uma série de três fotografias chamada “Derrubando uma Urna da Dinastia Han” na qual ele fotografou o momento em que segurou o artefato de mais de dois mil anos, representativo da tradição chinesa, e o simplesmente o soltou para ser estilhaçado no chão. A sensação de perda que a imagem nos transmite também nos leva a pensar: qual o valor das tradições? O quanto essas tradições e valores nos impedem de aceitar o novo? 

Ai WeiWei: Derrubando uma Urna da Dinastia Han
Na primeira imagem o artista segura o a urna nas mãos. Na segunda, a soltou e a urna anda esta no ar. Na terceira, a urna encontra-se em pedaços após chocar-se com o chão.

Se o medo nos une aos outros animais, a linguagem nos diferencia. Não surpreende que todo movimento que pregue a manutenção das segregações e intolerâncias comece com ataques sistemáticos a artistas.

Citados no episódio

Evidências da Teoria do Manejo do Terror