“Certas coisas não se dizem, porque dizendo, deixam de ser ditas pelo não-dizer, que diz muito mais.

Fernando Sabino
http://www.megafono.host/podcast/hiperativo/12-traducoes-e-adaptacoes-hiperativo

TEXTO 1

A verdade

Olhou para a velha máquina de escrever sobre a mesa e os papéis que formavam amontoados que se derramavam por todo o chão. Na estante, livros que inspiraram seu primeiro romance: Fundação, Espada da Galáxia, … , todos nas mesmas edições que lera em sua adolescência. Tentou se lembrar de como viera a primeira ideia, talvez isso ajudasse a resolver o dilema no qual se encontrava.

Fora em um bar com os amigos, um bar daqueles com jogos de tabuleiro. Lembrava-se das risadas, da porção de batatas fritas e do cheiro do perfume da garota que havia chamado para sair naquela noite. Em um determinado momento, talvez devido ao jogo, mas bem que poderia ter sido pela bebida ou o perfume, uma frase lhe ocorreu: “Arthur estava em pé sobre uma enorme rocha que avançava vagarosa e inevitavelmente em direção a estrela.”

Aquele tempo parecia imensamente distante, não se lembra do rosto da garota. Nem mesmo consegue enumerar quais eram os amigos que sentavam-se a sua volta. Alguns meses depois, o livro foi lançado. Seu editor havia informado que imaginava uma boa aceitação, mas não um sucesso estrondoso. A primeira edição esgotou-se em alguns meses. Alguns volumes desse agora raro exemplar adornavam as estantes da sala onde estava no momento. Com o sucesso, veio também a cobrança: fãs pediam explicações sobre passagens obscuras, produtores se amontoavam pelos direitos de um filme ou série, e todos cobravam uma continuação.

Em suas redes sociais, milhões de perguntas todos os dias eram recebidas, e ignorava a maior parte. Desejou jamais ter escrito o livro e quis se livrar dele. Conversou com o editor que propôs a venda de todos os direitos, mantendo apenas os dividendos. Outra pessoa poderia escrever, outra pessoa poderia roteirizar, outra pessoa poderia continuar. Outra pessoa. Ficaria livre da opressão que sua própria obra lhe impunha. Com aquele pensamento, avançou sobre a estante e arremessou ao chão todos os exemplares que ali estavam.

Seu acesso de fúria foi interrompido pela porta que se abriu. Passos desceram vagarosamente os degraus de madeira do porão. O homem depositou a bandeja com seu almoço em uma mesa no canto do quarto e olhou pesaroso para a mesa cheia de papéis.

− Ainda sem inspiração? – perguntou com um sorriso amistoso.

− Sim.

− Posso ler? – perguntou apontando para as pilhas de papel.

− Nada que valha a pena. – a resposta foi seca.

    O homem caminhou até a estante enquanto recolhia os livros caídos pelo chão. Olhou para o exemplar de “A Viagem Espiral” e disse pensativo.

− É o melhor livro que já li. Personagens envolventes, enredo emocionante. Uma obra perfeita.

− Você já me disse. Também me disse que odiou a continuação. Que quem não sabia o destino de Arthur, não havia entendido a obra.

− Tudo estava claro, desde o primeiro capítulo. Mas as pessoas não sabem ler. Uma pena que seja preciso explicar tudo.

− O que eu não consigo entender, é o que você espera que eu faça.

− Quero que escreva de forma que todos entendam o que eu entendi! – a voz soou com mais firmeza, apesar do sorriso permanecer estampado.

    Olhou para ele. Lembrava-se daquele rosto das primeiras convenções sobre seu livro. Sempre entre os primeiros na fila de autógrafos e fotos. Sempre com alguma observação sobre trechos do romance. Em princípio, havia achado engraçada a forma como ele respondia a algumas perguntas que outros fãs lhe faziam. Depois, passou a se incomodar e foram fãs como ele que motivaram o seu afastamento.

    Depois de colocar os livros na estante, ele tentou organizar os papéis. De repente, parou o movimento. Pegou uma folha e sorriu dizendo: “Este é o caminho!”. Entregou-lhe a folha e subiu as escadas.

− Você é brilhante! É a melhor escritora do mundo!

    Ela olhou para o papel onde há pouco havia escrito a lápis: Arthur estava em pé sobre uma enorme rocha que avançava vagarosa e inevitavelmente em direção a estrela…

COMENTÁRIO 1: Abertura

Sejam muito bem vindas ou bem vindos ao Hiperativo, um espaço de reflexão sobre temas diversos a partir de textos literários e informativos. Eu sou Marcelo Cafiero e hoje nós vamos falar sobre leituras, traduções e adaptações.

TEXTO 2: Reflexão sobre traduções e adaptações

    Quando falamos de adaptações de livros para o cinema (ou vice-versa), lidamos essencialmente com uma tradução, de uma linguagem para outra. Quando transformamos um poema em uma música, um livro em filme, filme em livro, estamos transportando uma produção de um campo semiótico para outro. Essa tradução é um trabalho bastante difícil e, da mesma forma que as traduções de uma língua para outra, nunca preserva o mesmo sentido do original.

    A linguagem cinematográfica deve ser mais objetiva e seu foco é voltado às imagens em detrimento do texto. Já a linguagem literária é bastante diferente, quase oposta. Seu foco é voltado para o texto em detrimento das imagens, que somente são construídas através do texto. Comparando novamente à tradução entre diferentes línguas, existem palavras em certas línguas que não possuem equivalentes em outras, da mesma forma, existem “palavras” em certos campos semióticos que não possuem equivalentes em outros. Isso torna difícil o trabalho do tradutor, difícil e ingrato. Muitos são os que não reconhecem o esforço do tradutor, esperando ver na tradução um espelho exato do original. Claro que existem boas e más traduções, mas as traduções literais raramente são adequadas.

    Se o tradutor de A Metamorfose, de Kafka, entendesse que o povo de seu país não sabe muito bem o que é uma maçã e, portanto, poderia não compreender que é uma fruta, a mudança de uma maçã por uma pêra seria compreensível. Porém, se ele acreditasse que uma maçã dificilmente feriria um inseto do tamanho de Gregor e decidisse que seu pai atiraria nele uma pedra seria um erro. Essa sutil diferença é importante para compreendermos a diferença entre adaptação e modificação.

    As modificações sempre têm um peso muito maior que as adaptações quando vamos avaliar uma boa tradução. Uma boa adaptação não é nada mais que a obrigação do tradutor. Enquanto a modificação é uma intrusão em uma obra que não lhe pertence. As falhas, porém, não invalidam todo o trabalho.


Vírgula

Os dicionários nos fazem crer que os idiomas são um repositório de sinônimos, mas não são. Os dicionários bilíngues, por outro lado, nos fazem crer que cada palavra de um idioma pode ser substituída por outra de outro idioma. O erro consiste não não percepção de que cada idioma é um modo de sentir o universo ou de perceber o universo.


COMENTÁRIO FINAL

O texto que inicia esse episódio é um conto de minha autoria e reflete sobre… bem acho que é bem possível que vocês tenham feito já a sua compreensão dele, não é? O segundo texto também foi escrito por mim anos atrás e agradeço à Karin Voll, do X-Poilers e do uaiPod, por ter me lembrado dele anos depois. Ele falava sobre a adaptação de O Senhor dos Anéis para o cinema, tirei essas partes, mas vou deixar um link para o texto completo na postagem. Na verdade, a Karin foi a inspiradora desse podcast, quanto me disse que havia lido esse meu texto (que foi publicado em uma fanzine na época) e que o usava constantemente como referência. Eu revirei meus alfarrábios e acabei encontrando uma cópia. Mas enquanto procurava, encontrei outros textos que já foram publicados aqui nos episódios anteriores.

Sempre tentei encontrar uma forma de inserir esse texto aqui no Hiperativo, de maneira a retribuir a inspiração, mas só fui conseguir escutando um comentário do Mário Sérgio Cortela sobre tradução. Nele, o professor refletia sobre os limites da licença poética do tradutor, citando a afirmação do escritor argentino Jorge Luís Borges: “O original não é fiel à tradução”. Borges tem uma compreensão bem interessante sobre a tradução, segundo ele, cada tradução é uma forma de aperfeiçoar uma obra, sendo esta sempre incompleta. Perguntado sobre a tradução de seus textos, ele afirmou que o tradutor é quem melhor conhecia a sua obra, pois havia lido mais de uma vez o que ele lera apenas uma. Assim, a noção de tradução e adaptação, choca-se diversas vezes com a nossa compreensão de verdade. Ou seja, a percepção de que existe uma só obra de “O Senhor dos Anéis” (por exemplo) e que a verdade está nela (o que deriva muito da relação ocidental com o livro mais vendido no mundo, a Bíblia).

O comentário logo após o segundo texto é um trecho de uma análise de Borges sobre a tradução. E gosto particularmente do momento em que ele afirma que não há paridade entre as palavras em idiomas diferentes, pois cada idioma reflete uma forma de ver o mundo. Há um livro do qual gosto muito chamado Great Expectations, de Charles Dickens, cujo título no Brasil tornou-se “Grandes Esperanças”. Essa palavra, ‘esperança’, é geralmente retraduzida para o inglês como “hope” e não expectations, como no original. Durante muito tempo essa escolha me incomodou, mas atente que Esperança vem de “espera”, algo que a pessoa aguarda até que aconteça, podendo, ou não agir para atingir esse objetivo. A palavra inglesa hope, não traz esse significado, sendo mais relacionada a “desejo” do que à espera. Já expectativas, que seria a palavra “equivalente” em de expectations, relaciona-se a ideia de probabilidade ou possibilidades de um acontecimento. Assim, ao escolher entre uma e outra, o tradutor certamente transmitiu uma leitura da obra. Algo seu.

Quando amamos uma obra, seja ela livro, filme, música, escultura, elas se tornam parte de nós, nos transformam e nós as transformamos (não necessariamente para os outros, mas essencialmente para nós mesmos). Por isso é dolorido para um fã ver uma adaptação do seu romance preferido, pois está tendo a leitura de outra pessoa, não a sua.

Este foi mais um episódio do Hiperativo. Se você gostou, compartilhe com os amigos! Você pode me encontrar no twitter em @marcelocafiero ou mandar um email para hiperativo@desaprender.com.br. Não esqueça de entrar no site do desaprender.com.br e conferir os outros podcasts que temos por lá! Um abraço e até a próxima!