Hoje é dia do Hiperativo invadir o Entre Fraldas! Como vamos ensinar nossos filhos a lidarem com a tecnologia? Como temos pensado as nossas interações com as máquinas? Além de refletir sobre uma ética dos robôs, não seria necessário também pensarmos em uma ética com os robôs?

Parte 1. Superbrinquedos duram o verão inteiro

    Virando-se, Mônica viu Jules deitado no chão. A perna esquerda ainda repuxava lentamente. Na queda, o serviçal tentara se apoiar em alguma coisa e derrubara uma reprodução de Kussinski de que Mônica Muito se orgulhava – sobre a qual sempre fazia algum comentário quando a amiga Dora-Belle ligava. Lá estava a peça, estilhaçada ao lado do crânio do robô. A cabeça se abrira ao meio, revelando as matrizes auditiva e da fala.

    Ao ver Mônica de joelhos ao lado do corpo, David disse:

– Não tem importância, mamãe. Nós só estávamos brincando quando ele tropeçou. Ele é só um andróide.

– É, ele é só um andróide, mamãe – repetiu Teddy, o urso de brinquedo – Logo a senhora compra outro.

– Ó Deus! É o Jules. Pobre Jules! Ele era meu amigo. – Cobriu o rosto com as mãos. Não derramou uma lágrima.

– Logo a senhora compra outro para nós, mamãe – falou David. Timidamente, tocou-a no ombro.

– Logo a senhora compra outro para nós, mamãe – falou David. Timidamente, tocou-a no ombro.

    Ela se virou para ele.

– E o que você pensa que é? Você não passa de um pequeno andróide também!

    Assim que deixou escapar as palavras, Mônica arrependeu-se. David emitiu uma espécie de grito, no qual as palavras e enroscavam.

– Não… um andróide não… eu sou real… real feito o Teddy… feito a senhora, mamãe… Só que a senhora não me ama… meu programa… nunca me amou… – Ele corria em pequenos círculos e, quando as palavras terminaram, disparou para a escada, soltando aquela sua espécie de berro.

    Teddy foi atrás. Os dois sumiram de vista. Mônica pôs-se de pé e continuou parada, trêmula, ao lado do corpo do serviçal. Cobriu os olhos com as mãos. Mas não era assim tão fácil sumir com o desespero.

    Dos aposentos no andar de cima vinham vários estrondos. Cautelosa, Mônica subiu para investigar.

    Teddy jazia esparramado sobre o tapete, os braços estendidos, David estava ajoelhado sobre ele. Abrira a barriga do urso e estava examinando os mecanismos complexos lá de dentro.

    Teddy viu o olhar de horror no rosto de Mônica. – Está tudo certo, mamãe. Eu deixei o David fazer. Estamos tentando descobrir se somos reais ou só… urrrp…

Parte 2. Apresentação

Bem vindos e obrigado a todos pela audiência, eu sou Marcelo Cafiero e este é o hiperativo, um espaço para reflexão sobre temas diversos, a partir de textos literários e informativos.

Hoje estamos muito Black Mirror e o tema do nosso episódio são nossas relações com as máquinas.

Parte 3. Nossos filhos e as máquinas

– Mas esse mundo vai continuar a existir depois que você se for? Minha mulher, meus filhos?

– Sinceramente não sei

Star Trek Next Generation S01E11

Esse foi o diálogo entre o Capitão Jean-Luc Picard e o tenente McNary, um personagem criado pelo Holodeck da Enterprise no décimo primeiro episódio da primeira temporada. Picard e alguns membros da sua tripulação haviam ficado presos em uma simulação bastante realista, após os circuitos da nave terem sido afetados por uma anomalia elétrica, e a preocupação de McNary aparece após ele perceber sua verdadeira natureza como um programa de computador.

Por que Picard teve a preocupação de responder ao questionamento de uma maneira sincera? Por que se importar com o sentimento demonstrado por uma simulação, uma máquina? Ele poderia ignorar e simplesmente ir embora ou poderia responder um “sim” desinteressado. Se considerarmos friamente a situação, para a máquina, faria pouca diferença a resposta, mas uma atitude pouco respeitosa nos diria muito sobre o próprio Jean-Luc Picard.

A interação entre humanos e máquinas e entre humanos e humanos mediada por máquinas tem sido muito debatida recentemente na série Black Mirror. Mas, como já vimos pela citação de Star Trek, a Nova Geração, essa preocupação não é nova. A diferença essencial é que parecemos estar, hoje, assustadoramente perto das situações apresentadas em Black Mirror, com inteligências artificiais guiando nossas interações. Honestamente, não creio que estamos muito próximos de uma humanização das máquinas, mas acredito que nos aproximamos, cada vez mais, de uma desumanização dos seres humanos.

É por esse motivo que acredito que devemos ensinar nossas crianças a terem a cortesia de dizer: “Bom dia, Google, como funcionam os vulcões, por favor”.

Parece absurdo, parece… Mas vou lembrar de outra história, Toy Story. O desenho que colocou a Pixar no mapa dos grandes estúdios de animação, narra as aventuras dos brinquedos do Andy, um garoto muito educado e criativo. O grande vilão da narrativa é Cid, um menino que tem o defeito de maltratar brinquedos. Mas, afinal, qual exatamente é o problema do Cid? Ele tem um relacionamento ruim com a irmã, mas, apesar de reclamar muito, até respeita bastante as ordens da mãe. Mas Cid maltrata brinquedos, não demonstra a menor empatia por aqueles seres inanimados que, para todos os efeitos, não possuem personalidade ou consciência próprias, e por que deveria? Porque isso é humano!

Jean-Luc Picard e Andy são heróis em suas histórias, tratam com cortesia seres supostamente sem consciência, enquanto Cid, o vilão, é agressivo e insensível. Qual desses você deseja que sua criança se torne?

Parte 4: Comentário

    Esse foi o nono episódio do Hiperativo e demorou demais pra sair! Eu gosto muito de produzir esse podcast, mas também gosto que ele fique de uma forma que me agrade, então vou tomar sempre o tempo necessário para que fique assim. Bom, falando em forma, é bem possível que apareçam no feed alguns episódios com formatos levemente diferentes, como apenas uma narrativa, sem comentários extensos ou textos se costurando como foram esse e os episódios anteriores.

    O texto que abriu o episódio é um trecho do conto “Superbrinquedos quando vem o inverno”, de Brian Aldiss. O comentário sobre nossos filhos e as máquinas é de minha autoria. Assim como é de minha autoria o conto que irá encerrar este episódio.

    Caso queiram enviar comentários e sugestões enviem email para podcasthiperativo@gmail.com. Vocês também podem me encontrar no Twitter @hiperativo_pod e todas as semanas no www.entrefraldas.com.br

Eu fico por aqui, até a próxima!

Parte 5: Tony

– Precisamos nos livrar dessa máquina absurda!

    Foi assim que Horácio iniciou um diálogo com Roberto, enquanto observavam através do vidro a filha brincar no jardim de inverno.

    Vestido com ridículas asas feitas de caixas de papelão, Tony saltitava em uma imitação desajeitada de macaco alado, interpretando o livro favorito de Sofia, o Mágico de Oz. A menina, ao contrário do que poderia se esperar, estava vestida como a Bruxa do Oeste enquanto gritava: “Voem! Voem! Meus queridos”, para o robô. A quantidade limitada de atores, obrigava Tony a projetar hologramas dos demais personagens, Espantalho, Homem de Lata, Leão, Totó e, claro, Dorothy.

– O que tanto o incomoda, Horácio?

– O que me incomoda – respondeu –  é que Sofia não brinca com mais nenhuma outra criança, apenas com esse pedaço de sucata velho! – e concluiu – Sabíamos que ela encontraria dificuldades na escola, por ter dois pais e não uma família tradicional. A obsessão dela por esse robô não ajuda as coisas.

    Roberto sempre gostara da ideia de uma babá eletrônica, algo sem valores próprios para influenciarem a criação de sua filha e, obviamente, muito mais confiável que um ser humano. Mas ver a sua criança, agora com seis anos, interagir com uma máquina e projeções holográficas o forçava a concordar com Horácio. Era realmente preocupante.

– Concordo, mas como contar isso a ela? – perguntou enquanto mantinha os olhos fixos na filha, que brincava alegremente.

– Diremos que teve um defeito e foi enviado para conserto. Aí, o conserto começa a demorar, demorar, até que ela se esqueça.

    Assim fizeram. Ordenaram ao robô que ficasse no porão da casa e lá ele permaneceu, enquanto escutava através do assoalho os pais explicando à criança que ele estava com defeito. Escutou quando Alice perguntou ansiosamente pelo retorno de seu amigo, um dia, uma semana, um mês. Escutou quando ela começou a se interessar por outras coisas e outras crianças, e perguntava cada vez menos por ele. Escutou o dia em que os colegas foram visitá-la e brincavam de encenar o Mágico de Oz. Seus circuitos responderam àquela brincadeira conhecida e acionaram a projeção dos personagens que preencheram o vazio do porão. Mas um estrondo interrompeu a brincadeira, e os sons das estruturas da casa se partindo comunicaram a ele a necessidade e a urgência.

    Horácio e Roberto observavam horrorizados o caminhão que atingira o muro, derrubando-o sobre a casa. Correram para encontrar a filha. No Jardim de Inverno, ela aguardava o momento de entrar em cena como a Bruxa do Oeste. O impacto obstruiu a porta e ela estava presa enquanto todas as outras crianças haviam saído da casa. A coluna que sustentava a estrutura do jardim inclinava-se perigosamente. Correram. Músculos, tendões e ossos não foram ágeis o suficiente, apenas os olhos acompanharam a figura metálica que atravessou a porta do jardim e colocou-se entre a coluna em queda e a garota. Tony foi atingido em cheio, mas sustentou o peso tempo suficiente para que Sofia saísse e corresse em direção aos pais.

    Os três observaram quando a iluminação ocular que indicava funcionamento do robô apagou-se. Apenas a caixa de som em seu peito manteve-se operante, tocando o trecho da peça que tantas vezes havia encenado.


Textos do Episódio: