“Todo dia ela faz tudo sempre igual”, essa é uma das primeiras músicas que nos vêm a cabeça quando pensamos em rotina, não é? Mas temos muitas coisas para refletir sobre essa palavrinha de seis letras. Então, muda seu dia e vem escutar!
Parte 1 – Sinal Fechado
<música de Chico Buarque>
Parte 2
Comentário: Marcelo
Bem vindos e obrigado a todos pela audiência, eu sou Marcelo Cafiero e este é o Hiperativo, um espaço para reflexão sobre temas diversos a partir de textos literários e informativos. A partir desse episódio teremos um tema mensal dividido em dois episódios. Neste mês, como comentei no último episódio, o nosso tema é a rotina.
Parte 3
A mesma
Acordou pela manhã e logo notou um parafuso caído ao lado da cama. Perguntou para o marido – “deve ser do relógio”. Olhou com cuidado para o objeto, era bem feito, parecia ser de alguma coisa de valor, guardou-o na gaveta e foi tomar um banho.
Encarou o próprio rosto no espelho. Aquele velho conhecido de tanto tempo. “O tempo passa, mas você continua a mesma”, era o que os amigos sempre lhe diziam. A frase da qual tanto se orgulhava pareceu assumir um sentido diferente naquele instante… “a mesma”.
Preferiu apenas amarrar o cabelo, lavou o rosto e foi tomar o café da manhã. Pão integral com uma fatia de queijo branco e um suco de laranja. Quando foi que havia parado de tomar leite com achocolatado? Provavelmente logo depois da adolescência.
Ligou o carro e foi dirigindo pelo mesmo caminho. “O carro quase vai sozinho”, ela dizia brincando, mas não deixava de ser uma verdade. Quantas vezes, assim que estacionava o carro, nem mesmo sabia como havia chegado lá? Olhou para o edifício que frequentava há tantos anos.
Desde quando havia perdido a paixão por seu trabalho? Tudo parecia ser feito de maneira tão automática que, ao final do dia, quando a perguntavam, meio sem lembrar exatamente o que tinha feito, ela respondia: “o mesmo”.
O tempo passa, mas você continua a mesma
“O tempo passa, mas você continua a mesma”… e o tempo não deixa de passar, nunca! Então, ela tomou a decisão de mudar drasticamente sua vida, deixaria o emprego, mudaria para o interior para abrir aquela empresa própria que sempre desejou!
Não conseguiu esperar, inventou uma desculpa qualquer sobre o falecimento de um parente distante e correu para casa. Com empolgação contou tudo ao marido. Ele a olhou com uma expressão preocupada, abriu a gaveta do criado e pegou o parafuso.
– Quando você saiu, liguei para aquele rapaz que conserta de tudo. Ele disse que esse parafuso caiu da sua cabeça… mas não precisa se preocupar, amanhã mesmo ele vem para colocar o parafuso no lugar, e você vai voltar a ser a mesma.
Parte 4
Comentário: Marcelo
Rotina é algo controverso, duas pessoas podem uma falar bem e a outra falar mal, sem necessariamente discordarem, mas focarem em aspectos diferentes da palavra.
Rotina é acomodação, é uma tentativa de evitar o gasto maior de energia e, assim, repetimos diariamente as mesmas ações sem nem mesmo pensar no que fazemos… “o carro vai sozinho para o trabalho”, quantas vezes nós não pensamos assim?
Como dito no último programa, a rotina é uma devoradora de tempo, não o vemos passar, pois vivemos o mesmo de ontem. E vamos ficando cada vez mais cansados da mesmas coisas… da… “mesmice”.
Mas rotina também é repetição de ações necessárias à boa saúde e organização. Tentem pesquisar no google, aposto que, assim como aconteceu comigo, os primeiros resultados serão de instruções sobre “o poder da rotina”, “a importância da rotina” e uma série de instruções sobre como organizar o seu dia e aproveitar melhor o seu tempo… outra vez o tempo.
Me lembrei agora de uma frase de um filme com o Bruce Willis… não me lembro qual era o filme, mas ele era uma espécie de amigo imaginário de uma criança (não, não era o Gerrad de Pardier, era o duro de matar mesmo).
A frase era a seguinte: “dizem que cada hora que você gasta fazendo ginástica, você ganha meia hora de vida, mas para quê as pessoas querem mais tempo de vida se vão gastar fazendo ginástica?”… qual a relação? Bom… dizem que a organização poupa tempo, mas para que você quer esse tempo se vai gastá-lo com a própria organização?
Parte 5
Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
Hoje não posso ir
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
(…)
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Parte 6
Comentário: Marcelo
Este foi o quinto episódio do Hiperativo, e você percebeu que decidi abolir o epíteto de podcast, certo? Finalmente consegui publicar em um espaço de quinze dias… logo no episódio sobre rotina… começo a pensar que esse programa é uma materialização dele mesmo.
Abriu este episódio a letra da música “Sinal Fechado”, de Chico Buarque. A crônica “A mesma” é de minha autoria. Já o terceiro texto é um trecho da crônica “Eu sei, mas não devia”, da Marina Colasanti.
Enquanto todos esses textos refletiram sobre o lado negativo da rotina, decidi encerrar o episódio com o poema “O Meu Olhar”, do meu heterônimo favorito de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, que é, de certa forma, um manual de como viver a rotina renovando-a todos os dias.
Caso queiram enviar comentários e sugestões enviem email para podcasthiperativo@gmail.com.
Parte 7
O Meu Olhar
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender …
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar …
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…
Músicas do episódio:
- Sinal Fechado – Chico Buarque (Trecho)
- Opening Lines – David Szesztay
- The Fresh Monday – Dexter Britain
- Running Throug Tunnels
- A Messagen – Jahzzar
- In My Pocket – Jahzzar