Deus não joga dados com o universo.
Albert Einstein
A quantidade de dados que geramos a cada dia e imensa, e uma boa parte dessa informação é utilizada para prever as ações de cada um de nós… somos seres previsíveis?
Se você gostou do episódio, peço que perca um pouquinho do seu tempo gerando mais dados pra essa internet fazendo sua avaliação no iTunes.
Texto 1: Dados
Autor: Marcelo Cafiero
Música ambiente
<som de mar>
Pedro levantou-se assim que nasceu o sol, pegou a rede que estava pendurada ao lado da casa e, com uma agulha de emenda e linha, começou a realizar os reparos necessários. Arrastou a rede até o barco, e aproveitou a maré para chegar aos cardumes. Lançou a rede com todo o cuidado e aguardou.
<Som de veículos voadores>
Roberto olhava o céu povoado de pequenos objetos voadores que iam de um lado para outro, extremamente atarefados. Eram de vários modelos diferentes, mas todos eles exibiam os nomes de suas empresas detentoras: Google, Amazon, Apple, Americanas e outros. De tempos em tempos, um deles parava logo acima da janela de um apartamento, descia o produto que carregava através de uma corda e, caso o cliente o aceitasse, voltava para o centro de logística mais próximo para mais uma tarefa.
O cenário o lembrava um enxame de abelhas.
Muitos anos atrás havia assistido um documentário sobre esses insetos e ficou impressionado com a forma com cada uma delas executava sua tarefa exatamente como era previsto. À época havia ficado com certa pena das abelhas, privadas da liberdade em um sistema que privilegiava o coletivo. Ao ver a organização da sociedade hoje, pensava o quanto ele havia se iludido sobre seu próprio livre arbítrio.
“Estruturas emergentes”, foi que lhe disse uma vez um amigo que trabalhava na área de engenharia da computação. “Veja o comportamento de um enxame de abelhas furiosas. Elas voam de um lado para outro em um aparente caos. Mas basta uma análise mais cuidadosa dos dados de seu estado inicial e eu consigo prever o movimento futuro de noventa e cinco em cada cem. Apenas algumas parecem ter, em certos momentos, um movimento aparentemente aleatório, mas quase sempre voltam ao padrão instantes depois.”
Dados de seus estados iniciais
Foi a partir de estudos como esses que as grandes empresas começaram a oferecer seus produtos de forma mais personalizada. As pessoas passaram a disponibilizar livremente os “dados de seus estados iniciais” através de aplicativos de celular e redes sociais de vários tipos: navegadores gps, compras, restaurantes, música, vídeos, etc. Tudo isso gera uma enorme quantidade de informações sobre cada indivíduo. Bastava cruzar os dados para conseguir prever o movimento futuro e, pronto.
Começou com propagandas personalizadas, deixando o spam menos genérico e mais adequado a seu destinatário. Logo alguém pensou: “porque perder tempo em fazer propaganda? Uma vez que sei o que cada pessoa deseja, eu posso levar o produto diretamente para o cliente!”. A nova revolução do comércio começou: drones carregavam de um lado para outro produtos que nem mesmo haviam sido pedidos, mas na maioria dos casos eram aceitos. No início as pessoas estranharam, mas a comodidade de não ter nem mesmo de pensar em fazer compras convenceu a maioria.
Abelha
Para as grandes empresas, o lucro com a redução dos grandes centros de telemarketing compensava o gasto com pedidos rejeitados e viagens desnecessárias. Isso sem contar o fato de que as vendas cresceram fortemente com o novo sistema apelidado de Automação Baseada Em Leitura de Hábitos, ou ABELHA.
Será que realmente aquela era a sociedade mais adequada para todos? Como saber se realmente precisava, ou melhor, desejava alguma coisa se tudo chegava a sua porta assim que demonstrava um comportamento que era rastreado e processado? Como no dia em que, após o trabalho, retornava para casa com fome, tentando se decidir se pediria pizza ou comida japonesa. Esperava encontrar uma entrega de yakisoba.
Talvez pelo fato de ter feito check-in no China In Box há três meses… isso relacionado a não ter passado por um restaurante e não fazer compras na última semana… Provavelmente não era nada disso, as relações nunca eram tão diretas assim. Por isso, recebeu a visita do drone do Outback, levando uma salada e um suco. Tentou pensar se aceitaria… não era exatamente o que havia pensado, mas realmente ele gostava de salada e tinha pesquisado algumas academias para se matricular e perder a barriga. Era melhor mesmo comer uma salada e não pizza ou bolo de arroz.
Hoje, pensando novamente naquele dia, ele concluiu que o cheiro da pizza seria irresistível… certamente essa seria sua escolha em uma praça de alimentação do shopping.
Drone
Ao chegar em casa, viu o drone que a sobrevoava… o que será que ele precisava agora? Era estranho isso de ser o último a saber de seus próprios desejos. Fosse o que fosse, ele recusaria! Não havia nada que pudessem oferecer que ele compraria, por mais personalizado que fosse! Lembrou-se da fala do amigo “algumas abelhas parecem ter, em certos momentos, movimentos aleatórios”. Era isso! Acabara de descobrir a resposta.
O drone exibia o logo da Amazon. Assim que se aproximou uma mensagem foi exibida em seu celular: “Senhor, Roberto, identificamos que o senhor parece precisar de 1 DADO DE SEIS FACES. O senhor autoriza o débito em seu cartão de crédito?”. Ele clicou em “sim”, era exatamente o que precisava…
Bem distante dali, Pedro acordou pela manhã, pegou a rede que estava pendurada ao lado da casa e fez novamente os reparos que eram necessários. Arrastou a rede até o barco, e aproveitou a maré ainda alta para chegar aos cardumes. Lançou a rede com todo o cuidado e aguardou.
Marcelo: Bem vindos e obrigado a todos pela audiência. Eu sou Marcelo Cafiero e este é o podcast Hiperativo, um espaço de reflexão sobre temas diversos, a partir de textos literários e informativos. Hoje nosso tema é a Computação Clarividente
Texto 2: Seu Cartão Sabe Tudo
Autor: Superinteressante
Pense nas 10 últimas coisas que você comprou. Várias, talvez a maioria, não foram com dinheiro nem cheque – foram com um cartão de débito ou crédito. Todo mundo tem um. Passar o cartão é tão corriqueiro quanto escovar os dentes. Mas por trás desse ato banal existe algo que você nem imagina: bancos de dados que registram todos os seus passos e sabem muito sobre você. Quer um exemplo? As empresas de cartão são capazes de prever se uma pessoa vai se divorciar. E com até dois anos de antecedência – ou seja, antes que o próprio indivíduo tenha resolvido acabar com o casamento. Suas compras dizem muito sobre você. E a maquininha está ouvindo.
E ela sabe muito sobre você: que a sua comida preferida é a japonesa e, mais que isso, que você costuma frequentar mais as temakerias de determinado bairro. Que a sua família provavelmente acaba de comprar um animal de estimação – por causa das visitas frequentes a pet shops. Que sua irmã, prima, amiga ou até você mesma vai se casar – pelos gastos crescentes em floricultura, igreja, bufês, loja de vestidos. Que você está usando óculos, por causa das contas em oftalmologistas e óticas. É um grande estudo psicológico ou sociológico sobre a população – baseado apenas em dados.
Marcelo
Refletindo sobre esses dois primeiros textos, pensei em quão curioso é o fato de a palavra “dado” significar duas coisas significativamente opostas. “Dado”, de informação, é um fato, algo acontecido, computado… algo “dado”, particípio do verbo “dar”. Enquanto “dado”, o cubo de seis faces, representa a tentativa de aleatoriedade na escolha, vem de outra língua, do árabe “azar”… dad. A distopia de uma sociedade imensamente apoiada em dados, análises estatísticas, não está tão longe quanto parecia…
Texto 3
Afinal, como você explica para as pessoas que existe uma máquina capaz de prever desastres exatamente como este que as atingiu, mas que, mesmo assim, elas não foram avisadas? Você não diz a elas que é uma máquina. Você mente. Você diz que é a vontade de Deus.
Ainda que Robinson não esteja mentindo. O pastor é talentoso, bem falante, mas não passa de um soldado raso no exército da Revelação. Ele certamente não sabe nada a respeito da Cátedra: que se trata de um computador – e que computadores precisam ser calibrados. No caso de um computador que faz previsões, você precisa confrontar o que ele prevê com a realidade. Por exemplo, se a máquina diz que 45.832 pessoas vão morrer, você…
Você, só de vez em quando, em menos de dez por cento dos casos, não avisa ninguém e, aí, aproveita a oportunidade para contar os mortos. Se o número bater com a projeção, é porque podemos continuar a confiar no computador.
É por isso que Bobby está acompanhando o pastor Robinson: para tentar conseguir o máximo de precisão na contagem dos mortos, formatar os dados para uma nova rodada de calibragem do software da Cátedra.
Marcelo:
Lembro-me de uma vez, durante a primeira aula de filosofia no ensino médio, a professora (Cristina) falar sobre como o indivíduo é fruto do meio e que as nossas escolhas, aparentemente pessoais e únicas, são bastante orientadas por aquilo que nos rodeia. Me senti mal, tão mal que me lembro até hoje desse fato… se todas as nossas ações são de certa forma previsíveis, computáveis, o que nos torna únicos?
Este foi o segundo episódio do Podcast Hiperativo. Lembrando que a proposta é lançar um episódio por mês, sempre trazendo referências sobre um tema específico. Vou fazer um esforço para conseguir fazer uma publicação quinzenal.
Agradeço, novamente, a todos aqueles que vêm colaborando com suas opiniões sobre esse projeto.
Textos
O primeiro texto desse episódio, chama-se Colmeia e foi escrito por mim, na época em que Colmeia ainda tinha acento.
O segundo texto foi publicado pela revista Superinteressante no ano de 2010 e pode ser encontrado no site da revista, colocarei o link na postagem.
O terceiro texto é o trecho do bom livro “Guerra Justa”, de Carlos Orsi, que conheci através da indicação de um Dragão de Garagem. Se você gosta de distopias, ele é baratinho na versão digital para Kindle e vale a pena a leitura.
Por fim, o texto que encerra o episódio foi retirado e adaptado do livro de regras do RPG Paranoia, que também tinha acento na época em que foi publicado.
Texto 4 – Paranoia
A maioria dos cidadãos do Complexo Alfa está ou muito feliz ou num estado difícil de distinguir da felicidade. Suas atribuições os mantém ocupados e estimulados durante o dia. Eles têm muito tempo de lazer para gastar na companhia um do outro e vendo vídeos atraentes porém sem significado criados e produzidos pelo Computador. Desde a infância, os cidadãos são cuidadosamente educados em como ser felizes. Quando a educação fracassa, drogas são usadas extensivamente para impedir a infelicidade e o desconforto.
Utopia.
Você, é feliz cidadão?