Narciso e telas

TEXTO 1 – Narciso

Há muitos anos, na antiguidade grega, nasceu na região da Beócia uma criança de tamanha beleza que impressionou até mesmo seus pais, o deus Cefiso e a ninfa Liriope. Seu nome era Narciso. Como era de costume, levaram a criança até o adivinho Tirésias, que afirmou:

A criança viverá forte e saudável até a velhice… SE nunca vir sua própria imagem! No dia em que isso acontecer, ela morrerá!

Preocupados com a previsão, os pais de Narciso, esconderam todas superfícies espelhadas que ele poderia ter contato. Seu pai, que era um deus-rio, cuidou para que ele não vislumbrasse seu reflexo nos espelhos d’água.

Narciso cresceu, sem saber a imagem de seu próprio rosto. Mesmo assim, sabia de sua beleza, que era admirada por todos que o viam. As ninfas o perseguiam, mas ele não encontrava nenhuma que julgava a sua altura.

Certo dia, quando descansava sob as sombras das árvores em um bosque, escutou um movimento, mas não viu ninguém. A ninfa Eco, amaldiçoada a repetir apenas as últimas palavras que lhe eram ditas, o observava escondida, encantada com sua beleza.

“Tem alguém aqui?” – Perguntou o jovem Narciso.

“Aqui!” – Respondeu a alegre Eco

“Venha!”

“Venha!” – Eco repetiu exultante

Narciso correu até a entrada de uma caverna, mas não viu ninguém e disse novamente:

“Por que foges de mim?”

Eco conhecia a profecia de Tirésias para o jovem. Mesmo desejando imensamente encontrá-lo, sabia que naquela caverna havia um pequeno lago, de águas calmas, longe dos poderes de Cefiso. Por isso ela repetiu:

“Foges de mim!’

Mas Narciso não deu ouvidos, maravilhado por aquela voz que reforçava aquilo que ele mesmo dizia. Assim que entrou na caverna, viu o lago iluminado pelos raios de sol que atravessavam uma abertura alta àquela hora do dia. Ele debruçou-se sobre as águas e viu sua imagem refletida.

“Que esplêndida criatura!”, pensou imediatamente. “Certamente é ela a dona da voz que me chamava”. Tentou tocar aquele rosto encantador, mas assim que o fez, ele desapareceu. Desesperado de paixão, o jovem gritou “Volte!” e mergulhou atrás da imagem desvanecida, sem nunca mais retornar, deixando chorosa a ninfa Eco, a repetir:

“Volte! Volte! Volte!”

TEXTO 2 – Ikea Effect

Na década de 1950, quando a General Mills quis ampliar as vendas de sua mistura para bolos, contratou uma equipe de pesquisa que desenvolveu uma série de investigações e experimentos que chegaram a uma conclusão: “Retire o substituto dos ovos na mistura e acrescente a instrução de adicionar ovos frescos”. A solução agradou os consumidores, que passaram adquirir mais o produto. Mas qual o motivo de tal sugestão? Sabor? Segurança alimentar? Nenhum dos dois, a questão é que tornar tudo tão fácil, tirou do indivíduo a sensação de fazer parte do processo.

Anos depois, uma equipe de pesquisadores liderados por Michael Norton, professor em Harvard, realizou uma série de experimentos para avaliar o valor que as pessoas davam ao próprio trabalho e publicaram os resultados em um artigo com o poético nome de “Quando o labor leva ao amor”.

Em um dos experimentos realizados, os sujeitos foram separados dois grupos. Aos primeiros foi apresentada uma caixa de madeira já montada. Já ao segundo grupo, foram entregues as peças, ferramentas e instruções de montagem da mesma caixa para que fosse montada durante o experimento. Aos dois grupos foi feita a mesma pergunta: o quanto estariam dispostos a pagar pela caixa? Aqueles que se envolveram na construção do objeto, apresentaram em média uma proposta 63% superior às do outro grupo.

Em um segundo experimento, foram organizados três grupos. O processo foi semelhante, mas realizado com peças de lego e os participantes do terceiro grupo deveriam desmontar o que haviam construído antes de definir o valor que estariam dispostos a pagar. Novamente, aqueles que construíram o objeto apresentaram uma proposta maior, mas esse efeito não persistiu no grupo que precisou desmontar a peça.

A questão é que o valor que atribuímos às coisas não é tão racional quanto pensamos.


Em 1890, o escritor inglês Oscar Wild começou a publicar em capítulos a história de um jovem que invejou a própria imagem representada em pintura. Enquanto aquele retrato ficaria eternamente jovem, ele mesmo envelheceria. Magicamente, ou misticamente, então ele recebe o dom de permanecer eternamente jovem, enquanto a imagem envelhece. O problema é que o quadro passa a representar não só a passagem do tempo, mas também aquela parte de si mesmo que ele deseja esconder do resto da sociedade…

TEXTO 3

Ele entrou calmamente, trancando a porta por detrás de si, como era seu costume e arrastou a cobertura púrpura do retrato. Um grito de dor e de indignação irrompeu dele. Ele não podia ver alterações , a menos nos olhos, onde havia um olhar manhoso e na boca a ruga encurvada do hipócrita. A coisa ainda era asquerosa – mais asquerosa, se possível, do que antes – e a umidade escarlate que manchava a mão parecia mais brilhante, mais ainda

com sangue recém-derramado. Teria sido apenas a vaidade que o levara a fazer esta boa ação? Ou o desejo de uma nova sensação, como lorde Henry sugerira, com sua risada zombeteira? Ou aquela paixão em interpretar um papel que às vezes nos leva a fazer as coisas melhor do que somos ? Ou, talvez, tudo isso? Por que a mancha vermelha estava maior do que tinha sido? Parecia ter se espalhado como uma terrível doença sobre os dedos enrugados . Havia sangue nos pés pintados , como se a coisa tivesse escorrido – sangue até mesmo na mão que não segurara a faca.

Confessar? Aquilo significava que ele tinha de confessar? Render-se e ser condenado à morte? Ele riu. Sentia que a ideia era monstruosa. Além disso, quem acreditaria nele, mesmo se confessasse? Não havia traços do homem assassinado em lugar algum. Tudo o que pertencia a ele fora destruído. Ele mesmo queimara o que estivera lá embaixo. O mundo

simplesmente diria que ele estava louco. Eles o prenderiam se continuasse com a história.

Ainda, era seu dever confessar, sofrer condenação pública e fazer a reconciliação pública.

Havia um Deus que convocava os homens a contar seus pecados à terra assim como ao céu. Nada que ele pudesse fazer o limparia até que contasse seu próprio pecado. Seu pecado? Ele deu de ombros . A morte de Basil Hallward lhe parecia muito pequena. Ele estava pensando em Hetty Merton. Era um espelho injusto, este espelho de sua alma para qual estava olhando. Vaidade? Curiosidade? Hipocrisia? Não havia nada mais em sua renúncia do que isso? Houvera algo mais . Pelo menos , era o que ele achava. Mas quem podia dizer?

E este assassinato – iria persegui-lo por toda a sua vida? Nunca ele estaria livre do passado? Deveria realmente confessar? Não. Havia apenas uma única prova deixada contra ele. O próprio retrato – era aquela prova. Ele o destruiria. Por que o mantivera por tanto tempo? Isso lhe dera prazer uma vez, ao vê-lo mudar e envelhecer. Nos últimos tempos , ele não sentia tal prazer. Isso o mantinha acordado de noite. Quando viajava, era tomado de terror com o receio que outros olhos caíssem sobre ele. O retrato lançara a melancolia sobre as suas pai xões . Sua simples lembrança embotara muitos momentos de alegria. Fora como a consciência, para ele. Sim, era a consciência. Ele o destruiria. Ele olhou ao redor e viu a faca que havia golpeado Basil Hallward. Ele a limpara muitas vezes, até que não tivesse mancha alguma deixada sobre ela. Estava brilhante e reluzente. Como tinha assassinado o pintor, a faca mataria o trabalho do pintor e tudo o que ele significava. Mataria o passado e quando o passado estivesse morto, ele estaria livre. Ele a agarrou e esfaqueou

a tela com ela, rasgando a coisa de cima a baixo. Ouviu-se um grito e um estrondo. O grito foi tão horrível em sua agonia, que os criados assustados despertaram e saíram de seus quartos . 

Quando entraram, encontraram suspenso à parede um esplêndido retrato de seu patrão, como o tinham visto pela última vez, em todo o seu esplendor de uma delicada juventude e beleza. Deitado no chão havia um homem morto, em roupa de gala, com uma faca em seu coração. Ele estava murcho, enrugado e seu semblante era repugnante. Apenas quando examinaram os anéis reconheceram quem era.


Comentário final

Este foi mais um episódio do Hiperativo, o podcast que eu mais gosto de escutar!

Selfies matam mais do que ataques de tubarão! Essa foi uma das notícias das quais lembrei quando comecei a organizar esse episódio. A nossa necessidade e busca constante de reforçar nossa própria imagem e nos replicar infinitamente parece não se preocupar com riscos ou limites.

“Crescei e multiplicai-vos”. Passamos a multiplicar a nós mesmos cada vez mais.

Uma pesquisa recente comparou as músicas mais populares nos últimos cinquenta anos e identificou a progressiva substituição da predominância de um “nós” por um “eu”. Se por um lado isso pode significar positivamente a valorização das próprias características individuais sobre a ideia de um padrão homogêneo de comportamento e beleza. Por outro também é índice de uma sociedade cada vez mais autocentrada no indivíduo sobre a coletividade.

Essa valorização narcisista, quando aliada ao IKEA Effect é bem perigosa. Nós tendemos a supervalorizar de forma irracional aquilo que acreditamos ter depositado parte do nosso trabalho e esforço. Assim, o quanto estamos dispostos a buscar falhas nas nossas próprias crenças e ideologias? E quando as redes sociais me permitem um engajamento tão grande na campanha de um candidato, será que não cria também a impressão de que EU o criei e me faz dar a ele uma aura de valor maior do que a realidade? Como aquela estante torta e quase caindo que você se nega a aceitar desmontar?

Como Dorian Gray, nos detemos diante da dúvida entre confessar publicamente nossos erros e defeitos ou escondê-los, apresentando publicamente uma imagem perfeita, ainda que irreal, a qual nos agarramos.

O texto que abriu este episódio é uma adaptação do mito de Narciso escrita por mim. O texto sobre a pesquisa “Quando o labor leva ao amor” também é de minha autoria. Em seguida, foi apresentado um trecho do romance O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Por fim, encerro o episódio com a música “Memórias de um Narciso”, de Lorena Chaves.

Se você gostou desse episódio, não deixe de compartilhar com os colegas e contribua para a minha ideação narcisista. Você também me ajuda muito deixando sua avaliação no iTunes e conferindo os outros podcasts da rede Desaprender, em desaprender.com.br. Um abraço!