Por que estar em uma escola inclusiva pode ser positivo para crianças com e sem deficiência?
Se você não é pai de uma criança com deficiência talvez essa pergunta nunca tenha surgido em seu radar, mesmo o termo “escola inclusiva” seja desconhecido. Em termos objetivos, uma escola inclusiva opõe-se a uma escola segregada. Pensamos que a escola é inclusiva quando alunos com deficiência estão matriculados em classes regulares. O sistema educacional brasileiro adota a prática inclusiva, embora permita a existência de escolas especiais, como as APAEs.
A questão para pais de crianças com deficiências é por que escolher uma escola inclusiva e não uma especial? A questão que gostaria que os pais de crianças sem deficiência refletissem é: o meu filho vai se beneficiar se estiver em uma escola inclusiva?
Para responder a essas perguntas, vou trazer o relato da professora Maria Antônia Goulart, mãe da Beatriz, publicado no site diversa.org.br:
“Recebemos, na maternidade, a notícia de que Beatriz tinha Síndrome de Down. Fui tomada por um misto de decepção e insegurança. Não entendia como, de repente, aquela criança tão desejada não parecia coincidir com o bebê diante de mim. Mas ela estava ali e era minha filha. Assim, aos poucos, a síndrome foi se tornando aos meus olhos o que ela realmente é – uma das características de Beatriz, não ela inteira. Perceber isso foi muito importante e, talvez por essa razão, me incomodo tanto quando se referem a ela como “Down”, “Downzinha” ou “especial”. Ela é a Beatriz e, sim, dentre outras coisas, ela tem Síndrome de Down.
Conversando com outras famílias de crianças com deficiência, percebi que insegurança e medo são muito comuns. No primeiro momento, a deficiência é como um manto que cobre a criança: é tudo que a define, suas características e seu futuro. Mas, aos poucos, esse véu cai e percebemos em nossos filhos características familiares e, em muitos casos, até divergentes do que se fala sobre a especificidade.
E assim caminhamos por pouco mais de sete anos. Acompanhando o desenvolvimento de Beatriz, proporcionando-lhe terapias e atividades de estimulação, cuidando de sua alimentação e garantindo-lhe a convivência com crianças com e sem deficiência em todos os espaços da cidade. Ela frequenta aulas de natação, brinca no parquinho da praça, vai à praia. Ainda com um ano, foi matriculada em uma escola regular.
A escolha da escola não é uma tarefa fácil. Não são raros os casos de famílias que receberam negativa de matrícula de lugares que se dizem despreparados porque não “entendem da deficiência”. Novamente, o manto cobre a criança e a escola deixa de ser uma instituição capacitada para ensinar e se apresenta mais como uma unidade de saúde, que deve dominar os temas correlatos à deficiência. Tive sorte nesse aspecto. O lugar onde meu filho mais velho já estudava era inclusivo.
Aliás, quando contamos a nosso filho Luiz, que na época tinha 15 anos, que sua irmã tinha deficiência, ele reagiu com total espontaneidade. Contou-nos que tinha uma colega de turma com a mesma condição e que ela estudava, convivia com eles, tinha amigos e um namorado. Sua naturalidade em perceber que sua amiga era muito mais do que a síndrome me mostrou a importância de escolas inclusivas para todos nós. E de como só a convivência nos permite construir uma relação verdadeira com o outro.
Beatriz foi matriculada onde seu irmão estudava, a Escola Parque, no Rio de Janeiro (RJ). Embora a unidade contasse com muitos alunos com deficiência, ela nunca nos ofereceu um pacote de atividades ou procedimentos a partir da deficiência. Isso me incomodou no início. Como tantas crianças com Síndrome de Down já haviam estudado ali, eu imaginei que haveria algo pronto para minha filha.
Aos poucos, percebemos que as reuniões, a leitura dos relatórios e a convivência diária nos ajudavam a pensar nessas estratégias. E isso se dava menos em função de um “pacote de atividades por deficiência” e mais por um entendimento de que a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos exigem intervenções distintas.
Em alguns casos, há procedimentos comumente usados com estudantes com Síndrome de Down, mas não é uma regra. Conversando com outras mães, percebi que em muitos aspectos, o desenvolvimento de outras crianças na mesma condição foi distinto do de Beatriz. Num primeiro momento, isso pode fazer parecer que a escola não sabia o que estava fazendo. Mas, na verdade, foi isso que fortaleceu nossa confiança de que ela estava preparada não para lidar com a síndrome, mas com seus alunos.
Após seis anos na unidade, Beatriz passaria para o ensino fundamental. Era clara sua defasagem na área de alfabetização em relação ao restante da turma. Isso fez acender um sinal amarelo. A pergunta que não saia de nossas cabeças era: ela teria condições de passar de ano ou seria mais adequado ficar retida para um reforço? A escola não havia tratado de uma possível reprovação conosco. Foi a equipe de terapeutas que a acompanha que trouxe a discussão à tona. Caberia à família em diálogo com a escola tomar a decisão.
Foram dois meses de muita angústia. Conversamos com especialistas de diversas áreas e com outras famílias. Percebemos que essa preocupação não era só nossa. Há uma espécie de consenso de que se a criança não estiver alfabetizada, ela não conseguirá acompanhar os conteúdos dos anos seguintes. Se progredisse de ano, embora com os ganhos de uma inclusão social, pensávamos que os resultados na área cognitiva ficariam em segundo plano.
Preparamo-nos para uma reunião com a coordenadora, a orientadora educacional e a professora de Beatriz. A conversa começou com uma avaliação de seus avanços. Minha filha tem atraso no desenvolvimento da fala, o que compromete muito sua comunicação e participação. Soube que seu último ano fora marcado por progressos nessa área. Ela estava participando ativamente e fortalecendo suas trocas com o grupo. Além disso, havia amadurecido seu comportamento com relação a regras e procedimentos da turma e seu convívio com os colegas.
A orientadora educacional que a acompanha desde sua entrada na escola, então, citou diversos exemplos de como os amigos a reconheciam como par. Ouvi com entusiasmo que ela tem sido requisitada pelos colegas para participar de brincadeiras e que eles a impulsionam ao perceberem que, para ela, muitas vezes é cômodo ficar em uma posição mais passiva. Durante uma roda de conversa onde todos opinavam, antes que uma das amigas falasse pela Beatriz, um outro colega interveio, dizendo que ela já sabia falar e poderia expressar sua opinião. O ambiente de trocas é estimulante e desafiador para ela. Eles percebem suas dificuldades, mas reconhecem seus avanços e estão sempre apoiando seu crescimento.
Diante disso tudo, como poderíamos optar pela reprovação e pedir a ela que se integrasse em outra turma que ela não conhece e que a receberá como uma aluna do primeiro ano que não seguiu em frente porque não aprendeu o suficiente? Como desconsiderar que a aprendizagem não é um processo individual e que a mediação entre pares é parte disso? Recorri, então, a Paulo Freire que dizia que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Decidimos descartar a ideia de reprovação. Toda a dor e alegria que esse momento nos trouxe também são parte de nosso amadurecimento como mãe e pai.
Os desafios a seguir
Beatriz tem aprendido muito sobre muitos temas. Extraí algumas passagens de seu relatório: “Ela é boa em ciências e acompanha a turma muito bem”. “Adora as aulas de música e participa muito das atividades”. “Tem desenvolvido muito suas habilidades na educação física e se apropriado cada vez mais das regras dos jogos e brincadeiras”. “A matemática apresenta grandes desafios, mas já categoriza bem e está avançando bastante na representação numérica”. “Na área de alfabetização ela ainda está no estágio pré-silábico enquanto sua turma já está quase toda alfabetizada”. Ela seguirá para o segundo ano com o desafio de avançar nas suas hipóteses de leitura e escrita. Isso tudo ocorrerá com apoio da escola, dos terapeutas, da família, mas, sobretudo, de seus amigos.
Outras mães da turma me disseram não conseguir imaginar a turma sem a Bia. Não é somente ela que se beneficia do grupo – também seus colegas aprendem muito. Uma das mães me confidenciou que sua filha é muito impaciente e que conviver com Beatriz é um desafio para ela, que precisa entender que os ritmos das pessoas são diferentes. Não se trata apenas de aceitar e incluir, mas de aprendermos uns com os outros e de usar esses aprendizados em nossas vidas.
Em seu primeiro dia de aula no segundo ano, Beatriz acordou ansiosa e colocou o uniforme assim que se levantou. Falou várias vezes sobre como estava com saudades dos amigos. A chegada foi marcada por muita emoção. Todas as crianças se abraçando muito. Muitos pais e mães olhando felizes esse reencontro. E eu com os olhos mareados, pensando sobre como ela não teria isso se tivéssemos optado pela reprovação. Ela é parte desse grupo e é nele e com ele que vai aprender.
Que venha um novo ano, com seus desafios e conquistas. Se há uma coisa que nós aprendemos é que Beatriz aprende muito, a cada dia, sempre mais!
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Também conversamos sobre esse assunto com a professora Maria Teresa Egler Mantoan no Entre Fraldas #121.